A equidade de gênero não é uma pauta exclusiva das mulheres, mas sim uma transformação que impacta positivamente toda a sociedade, inclusive os homens e as empresas. Essa é a análise de Regina Madalozzo, economista, pesquisadora e autora do livro Iguais e diferentes: uma jornada pela economia feminista.
Ela falou com exclusividade para a ANBIMA sobre como o gênero impacta as decisões financeiras tomadas pelos indivíduos e explorou o peso que da desigualdade tem também para os homens. “Quando falamos de desigualdade, estamos falando de um sistema que impõe papéis restritivos para todos”.
Confira o bate-papo na íntegra:
ANBIMA: Como você define a economia feminista?
Regina Madalozzo: A economia tradicional se baseia na ideia do “homem econômico” — uma figura que toma decisões racionais sobre trabalho, consumo e políticas públicas. Embora essa figura tenha sido pensada para representar tanto homens quanto mulheres, ela ignora as particularidades de gênero, simplificando realidades complexas.
A economia feminista questiona essa visão, apontando que decisões econômicas não são neutras em relação ao gênero. Por exemplo, ao decidir sobre impostos ou subsídios, é crucial considerar quem será mais afetado — homens ou mulheres, trabalhadores de diferentes setores etc. Ignorar essas nuances pode perpetuar desigualdades, é uma simplificação que não é inocente. A economia feminista propõe um olhar mais atento às diversas formas como decisões econômicas impactam diferentes grupos, especialmente aqueles com menos poder. Ela amplia a análise para além das questões óbvias, como a divisão do trabalho doméstico, para todas as decisões econômicas que moldam nossas vidas, destacando a importância de uma abordagem que considere a complexidade do mundo real.
ANBIMA: Como você vê a importância de um olhar singular nessas análises? Como evitar erros significativos sem considerar essas particularidades?
Regina: Ter um olhar singular nas análises econômicas é crucial, especialmente no Brasil, onde questões raciais e desigualdades sociais profundas ainda não foram devidamente abordadas. Esses fatores têm um impacto direto na forma como as pessoas tomam decisões, moldando suas escolhas de maneiras que muitas vezes são invisíveis nas análises tradicionais.
No meu livro, destaco que, embora a economia tradicional presuma que as pessoas fazem escolhas racionais, essas decisões estão cercadas por restrições sociais, culturais e econômicas. A escolha não é simplesmente uma fórmula matemática; ela é influenciada por uma série de fatores que limitam ou direcionam as opções disponíveis para cada indivíduo.
Por exemplo, ao comparar as trajetórias de duas pessoas, não podemos ignorar as oportunidades desiguais que elas tiveram. O conceito dos “nem-nem”, jovens que nem estudam nem trabalham, exemplifica isso. Homens “nem-nem” muitas vezes não se envolvem em atividades produtivas, enquanto as mulheres “nem-nem” frequentemente desempenham tarefas domésticas e de cuidado, embora não remuneradas.
Tratar essas situações como se fossem equivalentes leva a políticas públicas ineficazes. Reconhecer essas singularidades — sejam elas de gênero, raça, classe social ou outras — é essencial para criar políticas que realmente atendam às necessidades específicas de cada grupo. Esse olhar singular evita erros graves e permite que as análises e intervenções econômicas sejam mais justas e funcionem.
ANBIMA: É um desafio curioso porque, ao estudar pessoas, precisamos agrupá-las em categorias para entender as diferenças e barreiras, quase como observar um caleidoscópio. Ao mesmo tempo, se generalizarmos demais, cometemos erros. Como equilibrar essa visão do todo com a atenção às partes, ao indivíduo e ao coletivo?
Regina: Não há uma resposta única, e nem um número exato de respostas que possam abarcar todas as nuances. Quando pensamos em uma mulher negra de classe alta, por exemplo, não podemos simplesmente categorizá-la sem considerar as particularidades que influenciam sua experiência. Precisamos entender o impacto do todo — como diferentes fatores afetam essa mulher — e, ao mesmo tempo, oferecer incentivos que reconheçam essas diferenças.
Esse raciocínio não vale apenas para indivíduos, mas também para empresas. A legislação tende a ser muito similar para todas as companhias, com poucas distinções. No entanto, é fundamental que adaptemos as regras para que cada empresa, com suas particularidades, tenha condições de sobreviver e prosperar.
ANBIMA: Quais são as principais dimensões que não podemos ignorar ao falar de economia feminista, especialmente em relação às desigualdades e à realidade das mulheres?
Regina: Uma das dimensões mais importantes é a segregação ocupacional, que exploro no primeiro capítulo do livro. Desde muito cedo, as escolhas de carreira são moldadas por fatores sociais e econômicos. Quando eu era criança, queria ser astronauta, economista, psicóloga, engenheira agrônoma e até bibliotecária. Eu tive o privilégio de considerar todas essas opções porque cresci em um ambiente que me ofereceu essas oportunidades e porque sou uma mulher branca.
Se eu tivesse nascido em uma realidade diferente, como na periferia de São Paulo, será que teria sonhado com as mesmas possibilidades? Muitas meninas em situações menos favorecidas nem sequer cogitam certas profissões, o que limita drasticamente suas escolhas e perpetua desigualdades. Mesmo para as mulheres que conseguem acessar essas profissões, a cor da pele e o gênero ainda influenciam as oportunidades de sucesso.
Outro ponto fundamental é a discriminação no mercado de trabalho, tanto em termos de remuneração quanto de oportunidades de crescimento. Mulheres e minorias muitas vezes enfrentam barreiras invisíveis, como o “teto de vidro”, que limitam seu avanço, independentemente de sua competência. Além disso, a economia do cuidado e a economia da família são áreas que refletem e reforçam desigualdades de gênero. As mulheres geralmente assumem uma carga desproporcional de responsabilidades domésticas e de cuidado, o que afeta suas oportunidades profissionais.
Isso também se aplica a discussões sobre casais homoafetivos e as complexidades legais que enfrentam. Também é essencial abordar a violência contra mulheres e meninas, que afeta não apenas as vidas pessoais delas, mas também o desenvolvimento econômico e social.
ANBIMA: Como podemos ampliar a compreensão de que a luta pela equidade de gênero é, na verdade, uma luta que beneficia a todos, e não apenas as mulheres?
Regina: É crucial entender que a equidade de gênero não é uma questão exclusiva das mulheres, mas sim uma transformação que impacta positivamente toda a sociedade, inclusive os homens e as empresas. Quando falamos de desigualdade, estamos falando de um sistema que impõe papéis restritivos para todos. A ideia de que apenas as mulheres sofrem com a desigualdade é limitada; os homens também pagam um preço alto, seja na forma de expectativas de sustento, menor envolvimento com a família, ou uma desconexão emocional que muitas vezes só é percebida tarde demais.
A resistência que vemos muitas vezes vem do desconhecimento do verdadeiro impacto dessas desigualdades. A competição aumentada que alguns homens sentem no mercado de trabalho não é um sinal de perda, mas sim uma oportunidade de crescimento. Estamos ampliando o campo de possibilidades para todos, e isso significa que a antiga forma de pensar, que mantinha certos privilégios intactos, está sendo desafiada.
Isso não é uma ameaça; é uma evolução necessária. O que precisamos fazer é continuar mostrando que a equidade de gênero traz benefícios para todos e que, ao eliminar barreiras para as mulheres, criamos um ambiente mais justo, inovador e sustentável para todos e todas. A luta não é contra alguém, mas sim a favor de um futuro melhor em todos possam prosperar. É essa mudança de perspectiva que pode transformar o desconforto inicial em uma motivação coletiva para agir e melhorar.