A inclusão de pessoas com deficiência no ambiente de trabalho enfrenta desafios diferentes de outros grupos minorizados. Guilherme Bara, palestrante e consultor em Diversidade, Inclusão e Compliance, falou com exclusividade sobre o tema para o nosso site. Ele deu orientações sobre como lidar com o medo de errar com a pessoa com deficiência, falou sobre a retenção desses talentos nas companhias e explicou como abordar a deficiência durante o processo de contratação.
Cego desde os 15 anos devido a uma retinose pigmentar (condição genética em que, no caso de Bara, o sangue não irrigou adequadamente a retina) Guilherme é formado Administração, tem MBA em Gestão de projetos e negócios e chefiou o Gabinete da Secretaria da Pessoa com Deficiência da Cidade de São Paulo. Ele também trouxe sua experiência enquanto executivo e pessoa com deficiência. “Não quero garantia de igualdade no ponto de chegada. O que eu quero é o respeito pelas minhas singularidades ao longo do caminho.”
Confira a entrevista completa:
ANBIMA: Quais dimensões podem ser analisadas em relação à pessoa com deficiência no ambiente de trabalho?
Guilherme Bara: Ao contrário de outros pilares da diversidade, o desafio de incluir pessoas com deficiência no mundo corporativo não enfrenta resistência ideológica ou religiosa. A dificuldade reside especialmente no medo generalizado – principalmente entre os líderes – de errar ao interagir com essas pessoas.
No inconsciente coletivo, a pessoa com deficiência é frequentemente vista como alguém que precisa de ajuda, como um objeto de caridade. As pessoas sem deficiência muitas vezes se sentem moralmente superiores ao se relacionarem com elas, acreditando estar fazendo o bem ao ajudar. Essa percepção de superioridade faz com que a pessoa com deficiência seja vista como alguém digno de pena. Se, durante a interação, o líder comete um erro com essa pessoa, que já é considerada vulnerável e cuja vida é presumidamente difícil, isso amplifica o sentimento de culpa.
O medo de errar é tão grande que muitos líderes preferem evitar essas interações. Quando confrontados com essa situação, geralmente tomam um de dois caminhos: ou se preparam adequadamente para lidar com isso, ou, inconscientemente, se afastam.
ANBIMA: Como acontece esse afastamento, sendo que a premissa é de que cada vez mais os líderes sejam próximos e presentes?
Bara: Hoje em dia, muitos líderes têm a capacidade de desenvolver justificativas racionais para esse distanciamento. Eles podem dizer que seu setor não é adequado porque tem barreiras físicas, que outro gestor está mais preparado porque tem um parente com deficiência, ou que a natureza técnica de sua área não é compatível com as necessidades da pessoa com deficiência.
Essas respostas são usadas para justificar o afastamento, evitando assim a necessidade de enfrentar e superar seus próprios medos e preconceitos. É claro que, em algumas situações, a pessoa com deficiência pode não estar preparada ou a acessibilidade pode não estar totalmente adequada, mas muitas vezes usamos essas justificativas, consciente ou inconscientemente, para manter o distanciamento. Fazemos isso porque temos um grande medo de errar.
ANBIMA: Qual seria sua orientação para esse ou essa líder?
Bara: Essa orientação é válida para todos, não apenas para os líderes formais, pois todos exercem algum tipo de liderança, seja formal ou informal, dentro da empresa. O problema não é errar com a pessoa com deficiência – infelizmente, ela já está acostumada a lidar com erros em diversos contextos: no restaurante, no transporte, na balada, e até mesmo em casa. A sociedade, de modo geral, não está preparada para atender plenamente as necessidades das pessoas com deficiência. Não entrarei aqui em julgamentos ou análises sociais. O fato é que a sociedade e os locais frequentados por essas pessoas não estão devidamente preparados, e elas já sabem lidar com essa falta de preparo.
Acontece que é muito melhor enfrentar dificuldades em uma empresa ou organização em que a pessoa com deficiência pode ter renda, ser protagonista de sua própria vida e ocupar um papel ativo na família, ajudando e servindo, ao invés de ser vista apenas como alguém que precisa de ajuda. A presença dela no ambiente de trabalho acelera o processo de educação da sociedade. Inicialmente, pode parecer um grande desafio, mas após algum tempo as relações se naturalizam e as interações se tornam comuns, como discutir política ou futebol no bar. Portanto, o maior desafio não é errar, mas não se abrir para aprender.
ANBIMA: Devemos abordar a deficiência no processo seletivo ou em algum feedback? Se sim, de que forma?
Bara: Durante o processo seletivo, é essencial abordar as habilidades técnicas e comportamentais do candidato, como em qualquer entrevista. Quando chegar o momento de discutir a descrição do trabalho e as tarefas, é importante incluir uma questão sobre acessibilidade. Você pode perguntar de forma direta e simples: “Há alguma questão de acessibilidade que você gostaria de mencionar? Alguma ferramenta ou suporte específico que você precise?”. Essa abordagem permite que o candidato se sinta à vontade para falar sobre suas necessidades, sem transformar o assunto em um tabu.
Para mim, o assunto da deficiência deve ser abordado, não como o tema central da conversa, mas de forma inclusiva e respeitosa. Muitos gestores ouvem de seus funcionários com deficiência que eles sentem a necessidade de esconder sua condição para serem aceitos, vivendo uma espécie de vida dupla. É impressionante como em muitas empresas há pessoas que usam aparelhos auditivos e nunca contaram para ninguém, por exemplo. Isso revela o quanto o tema ainda é sensível e mal abordado em nossa sociedade.
ANBIMA: Essas pessoas escondem por medo do preconceito?
Bara: É comum que exista um viés inconsciente que associa deficiência com incapacidade. Isso ocorre porque, historicamente, vemos pessoas com deficiência em situações de vulnerabilidade, como pedindo ajuda no Teletom ou nas esquinas. Existe, de fato, uma relação entre deficiência e vulnerabilidade social, e ajudar essas pessoas é importante. Quando não estão em situações de vulnerabilidade, muitas vezes são retratadas como histórias de superação que emocionam a todos.
A imagem da pessoa com deficiência é, portanto, dividida entre “coitadinha” e “super-herói”. Isso cria um problema para aqueles com deficiências invisíveis, como baixa audição ou visão. Muitas vezes, essas pessoas escondem sua condição para não serem vistas através desses estereótipos. Elas querem ser reconhecidas por suas habilidades profissionais, como analistas de RH, operadores de máquinas ou supervisores de finanças. É crucial reconhecer que essas pessoas também fazem parte de outros contextos na sociedade. Eu mesmo tive muita dificuldade em aceitar a minha deficiência.
ANBIMA: Você entende que existe um cuidado com a retenção desses profissionais da mesma forma que acontece com pessoas sem deficiência?
Bara: As empresas precisam cumprir cotas para pessoas com deficiência e isso faz o tema ser tratado como uma tarefa burocrática a ser cumprida. Muitas vezes, essas pessoas são vistas como o “patinho feio” da conversa sobre diversidade. Somado a isso, a legislação não diferencia se a pessoa com deficiência está em um cargo de entrada ou de alto nível, desde que conte para a cota. Assim, as empresas tendem a contratar para posições de nível mais baixo, em que o desafio é menor, perpetuando a ideia de que não há pessoas com deficiência qualificadas para cargos mais altos. Mesmo quando acontece a contratação para um cargo mais qualificado, a falta de oportunidades de crescimento pode levar à frustração e à saída dessa pessoa da empresa.
A retenção de talentos com deficiência requer um ambiente de trabalho inclusivo em que essas pessoas se sintam valorizadas e tenham oportunidades de crescimento. É importante destacar o papel da pessoa com deficiência em assumir o protagonismo de sua carreira também. Por diversas razões, mesmo aquelas que tiveram acesso a boas escolas enfrentam expectativas baixas. Qualquer conquista pode ser exageradamente elogiada, reforçando estereótipos de superação. Para mudar essa percepção, é crucial que tanto as empresas quanto os próprios profissionais com deficiência trabalhem juntos para promover uma verdadeira inclusão e desenvolvimento profissional.
ANBIMA: Você comentou sobre seu desafio em aceitar sua deficiência. Pode compartilhar um pouco da sua experiência?
Bara: Eu sempre tentava disfarçar porque perdi a visão aos poucos, então no começo fingia que enxergava, mas na verdade não. Demorei pra perceber que assumir minha condição e buscar as ferramentas disponíveis, como o braille, me tornaria muito mais forte. Quando me aceitei, minha vida mudou completamente afetiva, profissional e emocionalmente – tudo melhorou. As pessoas começaram a ver minha deficiência não mais como um tabu. Elas se sentiram mais à vontade para perguntar e para errar comigo. Pense nas pessoas com quem você tem intimidade, seja família, amigos ou colegas de trabalho. Quando temos intimidade, ficamos à vontade para cometer erros. Agora, se você não pode errar, qual é a reação natural? Você se afasta. Aceitar a deficiência não é simples, mas é essencial para o processo de inclusão.